Em um ano de cheias e vazantes históricas na Amazônia, o Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) divulgou um relatório alarmante, o mais completo e conclusivo publicado até agora, sobre a crise climática. No documento, o IPCC bate o martelo: nós já vivemos os efeitos da ação humana na Terra.
Segundo o relatório, que reúne sete anos de pesquisas, os efeitos da crise climática são graves e já são sentidos em todos os lugares. No coração da maior floresta tropical do mundo, povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas são os mais afetados.
As ondas de calor, inundações e secas extremas são alguns dos sinais mais visíveis de que vivemos, de fato, uma emergência climática. Mas quem vive em contato direto com o território relata que as mudanças vão muito além.
De acordo com Armindo Brazão, do povo Baniwa no Alto Rio Negro, as chuvas tem acontecido fora da época regular. "Agora está diferente. A chuva não acontece mais como antes. Tem chuva mais em períodos diferentes", relata.
A mudança no período chuvoso afeta a presença de peixes nos rios da região. "Antes tinha muito peixe, agora não", lamenta. Ele conta que o desmatamento também tem forçado animais como o katitu e a queixada para mais perto das roças indígenas. "Esses animais têm ido nas roças e têm comido toda a roça. As vezes acontece diarréia", explica.
As plantas tem florescido e não dado muito fruto e também as plantas estão dando fora da época e em menor quantidade.
Armindo Brazão
Apesar das mudanças na estação chuvosa, Armindo relata não sentir uma temperatura mais amena. "Hoje tem visto que apesar de chover mais, tem feito mais calor", reafirma.
Segundo o meteorologista Willy Hagi, este é um fenômeno que os cientistas chamam de ilhas de calor. "As áreas desmatadas acabam sendo mais quentes que a área de vegetação nativa. Então, a temperatura nesses locais acaba crescendo muito além do que deveria ser", explica.
O especialista em climatologia é taxativo ao dizer que essas mudanças são mais um efeito da crise climática: "Isso não é projeção. Isso já é observado na nossa região", conclui.
Ciclos orientados pelo clima
No mesmo sentido, o ecólogo do Instituto Socioambiental (ISA) Adeilson Lopes da Silva reconhece que grande parte do bem estar das populações tradicionais depende diretamente de ciclos e processos ameaçados pelas mudanças climáticas.
"Em acordo com estes ciclos e processos, vivenciados desde tempos imemoriais, foram sendo construídas e refinadas diversas práxis que orientam as pescarias, as caçadas, o preparo do solo e plantio das roças, as colheitas, os deslocamentos via navegação ou caminhadas, bem como toda uma gama de outros rituais que permitem uma interação mais saudável e equilibrada dos indivíduos e dos grupos com o cosmos", explica.
Ainda de acordo com Adeilson, o clima funciona como um dos grandes ordenadores de tomadas de decisões nas comunidades da Amazônia. "Para além da garantia dos seus direitos territoriais, os povos indígenas e tradicionais também se vêem, dessa vez, diante da necessidade de empreender novas lutas que lhes garantam uma atmosfera saudável", ressalta.
História que se repete
Em Roraima, o problema é semelhante. A coordenadora de gestão territorial e ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Sineia do Vale, contou que há um estudo com os povos da Serra da Lua, no sul estado, que demonstra que eles já têm percebido alterações por causa das mudanças climáticas.
Isso tem afetado na vida social, na pesca, na agricultura, na própria vida da comunidade, nos saberes tradicionais.
Sineia do Vale
Ela, que é do povo Wapichana, conta que a questão da falta de água também é um grande problema. "Há lugares que não ouvíamos falar de falta de água e, com essas mudanças, as pessoas já dizem que falta para o consumo, plantação ou para os animais beberem."
Representa da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) no Comitê Indígena de Mudanças Climáticas, Sineia conta que os grupos atuam em várias instâncias para defender as questões indígenas e para que o Estado possa ter um plano voltado para a realidade.
"O povo indígena desde sempre conservaram essas áreas e agora são afetados por essas mudanças. Precisamos ter um olhar especial para fortalecer e dar suporte a esse povo", ressalta.
No mesmo sentido, a coordenadora da Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac) Francisca Arara, do povo Shawãdawa, lembra que a relação entre os indígenas e o meio ambiente é diferente. "Temos outro jeito de pensar o uso do nosso território, das nossas florestas. Procuramos preservar a biodiversidade como um todo", destaca.
Francisca, que também é professora, reforça a importância de trazer os povos tradicionais para o centro do debate ambiental. "Precisamos levar nossa voz, sermos ouvidos e respeitados, pois o tema nos afeta direta e indiretamente", argumenta.
A caça e o caçador
Para o pesquisador André Moraes, do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Cidades na Amazônia Brasileira (Nepecab) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), esses efeitos da crise climática também atingem as "florestas urbanizadas".
Segundo ele, a relação que as cidades mantém com o seu entorno, principalmente em áreas sem ligação rodoviária, permite chamá-las de cidades ribeirinhas. "Como cidades ribeirinhas elas estão fortemente imbricadas com a natureza, transformam e se transformam no processo de incorporação dos elementos da modernidade", pontua.
Na avaliação do pesquisador, as cidades adquirem uma dupla percepção: são ao mesmo tempo vulneráveis e causadoras das transformações no clima.
"Por um lado são vulneráveis pois dependem do padrão de chuvas, humidade e fluxo hidrológico. Dependem, em muitos casos, de produtos florestais existentes que possivelmente sofrerão com alterações climáticas no médio prazo", conta.
Por outro, na visão dele, demandam expansão das atividades agrícolas e querem se inserir na malha rodoviária que caracteriza o país. "Estas demandas são vetores importantes na transformação das formações vegetais que por sua vez impactam a circulação atmosférica", ressalta. Desta forma, André avalia que se cria um círculo vicioso. "A caça é o seu próprio caçador", destaca.
Os efeitos da estruturação urbana afetam, em cadeia, as regiões rurais e as comunidades tradicionais da região. O custo de vida nas cidades localizadas ao longo da calha, exemplifica o pesquisador, permite diversas reflexões acerca do papel das cidades na manutenção da vida na Amazônia Brasileira.
"Há uma flutuação desse custo. Percebe-se no preço da cesta básica regionalizada, por exemplo, que os períodos de enchente encarecem a alimentação e comprometem a segurança alimentar dos povos ribeirinhos. Por outro lado, a vazante é época de fartura e abundância, por isso, os preços caem", explica.
Marco temporal
Neste cenário alarmante, além de vítimas, os povos tradicionais desenvolvem um papel de protagonismo na proteção da floresta. Enquanto 20% da floresta amazônica brasileira foi desmatada nos últimos 40 anos, as Terras Indígenas na Amazônia Legal perderam, somadas, apenas 2% de suas florestas originais.
As TIs na região amazônica abrigam 173 etnias indígenas e são fundamentais para a conservação da biodiversidade regional e global, pois as comunidades indígenas reconhecem o valor da floresta em pé na proteção e manejo dessas áreas.
Os territórios indígenas demarcados têm um papel fundamental na prevenção e no controle do desmatamento, tanto pela extensão de suas áreas - com elevados índices de conservação ambiental e com os maiores remanescentes florestais do país - quanto pelos modos tradicionais de vida dos povos indígenas, caracterizados por uma relação harmônica com os ecossistemas.
Este é só mais um dos motivos que faz com que a tese do marco temporal, que está em julgamento no STF, seja tão cruel. Defendida por ruralistas, o marco temporal quer estabelecer que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Na luta contra o marco temporal, seis mil indígenas de 176 povos de todas as regiões do país estiveram presentes em Brasília, reunidos no acampamento “Luta pela Vida” para acompanhar o julgamento no STF e lutar em defesa de seus direitos, protestando também contra a agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e do Congresso Nacional, na maior mobilização indígena dos últimos 30 anos.
[Extra]
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